O Brasil vive uma crise econômica com contornos inéditos. O desemprego bateu na casa dos 14% e mesmo entre os empregados, há uma parcela enorme de informais, sem qualquer proteção das leis trabalhistas. A inflação chegou aos dois dígitos, atingindo a casa dos 10,25% e a pandemia de covid 19 parece piorar ainda mais o cenário.
Para a economista Leda Paulani, professora da Faculdade de Administração e Economia da Universidade de São Paulo (USP), “corre o risco de detonar um processo doloroso pelo qual nós já passamos, há uma década atrás, de inflação inercial”.
O processo já aconteceu no Brasil, na crise do final dos anos 1970 até a metade dos anos 1980. A inflação inercial soma os preços a uma expectativa futura de preços, gerando um processo insustentável de altas seguidas e ainda mais corrosivas à renda da população brasileira.
A economista é a convidada desta semana no BDF Entrevista e avalia que a instabilidade política do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) é uma das principais causas da crise econômica do país.
“Desde que Bolsonaro sentou na cadeira em Brasília é o responsável por essa subida sem parar do dólar. Já tem pandemia, tem crise energética e você junta tudo isso com uma instabilidade política enorme, uma ameaça permanente à democracia, tudo isso vai dar em um ambiente de medo para investimentos no país, e o dólar vai se valorizando, a nossa moeda se desvalorizando”.
Na última semana foi revelada uma série de documentos pelo projeto Pandora Papers, uma investigação jornalística que desvendou atores políticos e empresários, inclusive brasileiros, que detêm empresas offshore em paraísos fiscais. Entre eles, oministro da economia Paulo Guedes, e o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto.
A alta permanente do dólar no Brasil pode ter garantido ao ministro uma grande valorização do próprio patrimônio, o que seria legal, mas é vedado a servidores públicos, ainda mais àqueles na posição de Guedes.
“Para além da ilegalidade, tem uma questão ética: um cara que é ministro da Economia de um país e deixa o seu dinheiro fora do país, ou ele não acredita no país dele, na economia que ele está gerindo, ou ele quer se beneficiar de alguma forma, de ter esse acesso privilegiado a informações”, ressalta Paulani.
Confira alguns trechos da entrevista:
Brasil de Fato: Gostaria de começar falando sobre um tema que li em um artigo recente da senhora, a “crise covid”. Tivemos a falsa ideia no começo da pandemia que o neoliberalismo seria desgastado pelo aumento dos gastos públicos. Mas, na verdade, o que a gente tem visto com o desenrolar do tempo é o capital ganhando cada vez mais força. O número de bilionários, inclusive, só tem crescido nos últimos levantamentos.
Leda Paulani: De fato, a pandemia ela trouxe situações que colocam desafios muito grandes para isso que a gente pode chamar de gestão neoliberal do capitalismo, que ainda está em voga, mas já tem quatro décadas, e que se pauta por essa ideia de que o Estado tem que ser o menor possível, que o mercado tem que ir tomando conta de tudo, tudo tem que ser privatizado. Toda essa filosofia, entre aspas, por trás da ideia de que o Estado é ruim e o que é bom, porque é eficiente, porque tem concorrência e tal, é o mercado
E isso leva à ideia de que, não só tudo que é privado é melhor, como uma ideia do cada um por si, uma ideia muito forte de individualismo, se você insistir você consegue, meritocracia, e tudo isso. E com isso, simultaneamente, você tem uma desvalorização dos valores opostos, do comum, do solidário, do coletivo, do público e a própria ciência que vai de roldão nessa coisa, porque a ciência é uma aventura que é social por natureza, o conhecimento depende da humanidade como um todo.
Que desafios a pandemia colocou a essa gestão do capitalismo, que tem esse tipo de filosofia por trás? O fato de que, por ser uma pandemia, ela demanda atitudes coletivas, não adianta só eu tomar vacina, se eu tomo vacina e os outros não tomam, eu continuo desprotegida como antes, só para dar um exemplo que é bem exemplar, paradigmático dessa situação.
Sem saúde pública, sem autoridades sanitárias, controle sanitário que tem que ser público, feito através do Estado, você tampouco consegue enfrentar um problema como esse. Sem recursos públicos para sustentar as pessoas, para elas ficarem em casa e impedirem a disseminação descontrolada do vírus, também é difícil de enfrentar o problema.
Tudo isso contribuiu para colocar em xeque esses valores que estavam predominando há tanto tempo. Não é sempre o privado que é melhor, não é só o individual. A sociedade moderna tem mais necessidade de Estado, de políticas públicas, de incentivo a comportamentos solidários e coletivos, de compartilhamento, de valorização das coisas comuns.
O outro lado da história, que foi o que você se referiu no final da sua intervenção, que tem a ver com o seguinte: você tem já um estoque de riqueza muito concentrada hoje, que aliás foi se concentrando muito mais por conta dessa gestão, desse tipo de gestão da economia capitalista, nas últimas quatro décadas, e essa riqueza tem que continuar a existir como riqueza e tem que continuar a se valorizar como riqueza.
Isso não muda do dia pra noite, não mudou nem depois da crise de 2008/2009, porque os próprios governos se encarregaram de preservar as perdas dessa riqueza. Porque, também, as perdas dessa riqueza teriam impactos sociais e políticos indesejáveis. Então tem esses dois lados da história, que acontece tanto no Brasil quanto no mundo, é um fenômeno que tem a ver com o capitalismo como um sistema global.
O auxílio emergencial caiu de R$ 600 para R$ 150 em 2021. Com esse valor atual é possível comprar apenas 20% dos itens de uma cesta básica comum, do índice que a gente costuma usar para cesta básica. O auxílio, que demorou a sair e hoje não representa quase nada na renda dos brasileiros, seria uma brecha histórica para a criação de uma renda permanente em um país tão desigual como o nosso?
Olha, eu acho que politicamente, dado o governo que temos, a gente não teria condições políticas de aproveitar essa oportunidade e transformar isso em um programa de renda básica universal, por exemplo, que é diferente de um Bolsa Família, é uma coisa de direito à renda, tem outra ideia por trás.
Isso seria, de fato, uma oportunidade de mostrar que, de repente, essas coisas [auxílio emergencial], que no caso da pandemia foram uma coisa emergencial, uma coisa eventual porque, afinal, você criou uma situação inédita, muito difícil para a maioria da população, isso poderia se tornar uma regra, e aí você poderia aproveitar as oportunidade para fazer um programa de renda básica universal. Mas eu não acredito que a gente no Brasil, hoje, tivesse condição política de aproveitar isso.
A senhora tem falado bastante sobre ecossocialismo. Alguns chegaram a dizer que Marx não teria aprofundado esse tema na sua obra mas, na verdade, os teóricos do ecossocialismo resgatam a partir de Marx ideias possíveis de uma junção entre o socialismo e a ecologia. É necessário, cada vez mais, falar sobre esse tema?
Eu acho que vai se tornar absolutamente necessário para preservar a vida humana na terra, a julgar pelo que mostram os estudos, a menos que todos os estudos estejam muito inflados com perspectivas pessimistas demais. Não sendo isso, vai se tornar uma questão de necessidade, assim como houve necessidade de enfrentar a pandemia, no mundo todo você tem iniciativas já, há muito tempo, desde o final do século passado, de acordos internacionais, grandes conferências, para reduzir a emissão de carbono e reduzir o uso de combustíveis fósseis.
O que acontece é que, na maior parte dos casos, esses acordos acabam não sendo respeitados, não são incentivados, porque os interesses dos capitais que estão aí em movimento na economia se chocam com essas metas, com esses resultados que devem ser obtidos. Os governos não necessariamente tem a força suficiente para enfrentar essa força poderosa dos capitais privados.
A inflação acumulada dos últimos 12 meses já bateu os dois dígitos. Como isso tem corroído a renda das pessoas? A renda, inclusive, que teve o menor nível em 10 anos. O que é necessário para controlar a inflação no Brasil, é possível fazer isso dentro dessa gestão?
A corrosão que a inflação causa na renda das pessoas é até pior do que os 10%, porque conforme o nível de renda das famílias, o peso da alimentação se altera, então quanto mais baixa a renda, mais a alimentação participa dos gastos, uma parcela maior do orçamento da família vai para alimentação.
E os preços médios dos alimentos têm crescido muito mais do que 10%, na realidade os alimentos têm puxado a inflação junto com os combustíveis. Se você pensar desse ponto de vista, o impacto que esse aumento de preço tem na renda dos brasileiros, principalmente das famílias de renda mais baixa, que são a grande maioria do país, dois terços, o impacto é muito maior.
O que está por trás desse processo são fenômenos internacionais. Você tem uma crise de energia também internacional, o aumento do preço do petróleo também internacional, você tem uma escassez de gás natural no mundo, são alguns elementos que puxam esse preço para cima, um preço em dólar.
Aí você junta aqui no Brasil que, além de ter esse preço em dólar mais alto dos combustíveis, de alguns grãos, de energia de modo geral, você tem o dólar cada vez mais caro, então são cada vez mais reais necessários para comprar cada dólar.
Eu acho que a gente corre o risco, no Brasil, pode ser que eu seja pessimista demais, mas tudo que eu já estudei sobre inflação me diz que a gente corre o risco de detonar um processo doloroso pelo qual nós já passamos, há uma década atrás, de inflação inercial. É um processo que você começa a jogar para frente a inflação passada, isso é uma espécie de um carro que quando começa a andar, é difícil de parar depois.
E se você deixar esse processo detonar sem um ponto de viragem, vamos dizer assim, você vai ter uma situação terrível. É claro que a gente não tem hoje, como a gente tinha anteriormente, esses mecanismos oficiais de indexação, as obrigações reajustáveis do Tesouro Nacional, a correção monetária oficial, nada mais disso existe e terminou com o Plano Real.
E o que pode detonar isso é a questão do câmbio, porque o dólar é a moeda que mais valorizou no mundo, é inexplicável tamanha desvalorização do Real. E isso é que pode detonar, porque bate nos combustíveis, que bate no transporte, que bate em tudo, junto com outras crises localizadas, e dá esse resultado terrível.
Os próprios analistas de mercado reconhecem que a instabilidade política permanente que o país vive, desde que Bolsonaro sentou na cadeira em Brasília, é a responsável por essa subida sem parar do dólar. Já tem pandemia, tem crise energética e você junta tudo isso com uma instabilidade política enorme, uma ameaça permanente à democracia, tudo isso vai dar em um ambiente de medo para investimentos no país, e o dólar vai se valorizando, a nossa moeda se desvalorizando.
Aproveitando o tema, o ministro Paulo Guedes e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central, entre outras autoridades e personalidades brasileiras, foram desmascarados com empresas offshore fora do país. Ter uma empresa dessas não é proibido, mas no caso do ministro é um conflito de interesses e com o dólar hoje em R$5,50, isso soa intencional.
Essa pergunta é boa para as pessoas poderem entender exatamente o que é isso, o que é uma empresa offshore. Essas empresas, fora do país, não produzem nada, não produzem um parafuso, nem uma aula, para falar de bens e serviços. É uma empresa simplesmente de gestão de patrimônio, que é aberta em locais onde você não paga imposto, os chamados paraísos fiscais, que no caso do ministro são as Ilhas Virgens Britânicas.
São lugares onde você não paga imposto e portanto, quem não quer pagar imposto, pega o seu patrimônio e joga lá fora. Isso não é uma coisa ilegal, hoje não é proibido sequer você ter recurso fora do país, teve uma abertura financeira enorme na economia brasileira, você pode ter conta em dólar fora do país e deve justificar pró forma quando você tirar divisas do país.
Colocando lá fora você, digamos, protege o seu patrimônio da tributação. Agora, tem que ser declarado na Receita, quando você faz declaração de imposto de renda, você tem que declarar na sua declaração de bens, o valor que você tem lá, do patrimônio.
No caso de funcionários públicos, principalmente dos cargos mais elevados, existe uma proibição, se você tiver alguma coisa como essa, você tem que desmanchar. O presidente do Banco Central saiu, agora, só pouco tempo atrás, mas o ministro Guedes não saiu.
Para além da ilegalidade, tem uma questão ética: um cara que é ministro da Economia de um país, e ele não é nem ministro da Fazenda, é da Economia, o Bolsonaro criou esse grande ministério, e deixa o seu dinheiro fora do país, ou ele não acredita no país dele, na economia que ele está gerindo, ou ele quer se beneficiar de alguma forma, de ter esse acesso privilegiado a informações.
Se beneficiar sobre que medidas o governo vai tomar e o que vai acontecer com a economia e valorizar o patrimônio dele é um conflito inaceitável, aliás, gerou até um mau humor do Congresso para com ele.
Fonte : Brasil de Fatos
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