África e a urgência em se construir pan-africana popular

Publicado por Albry Alves em 20/09/2023 às 20:23



A agenda imperialista continua a fazer-se sentir na África através da interferência das potências globais. Não só as nações ocidentais, mas também, e cada vez mais, as nações não ocidentais e as empresas transnacionais impõem, amiúde, acordos comerciais nocivos e preconizam políticas neoliberais que prejudicam as economias locais e fomentam a dependência no capitalismo global. Essas pressões econômicas lesam a autonomia das nações africanas e perpetuam um ciclo de dependência na ajuda estrangeira.

A ascensão de governos populistas, autocráticos e não democráticos por todo o continente africano é uma tendência consternadora. Alguns desses regimes nasceram da colaboração com as potências ocidentais e o capitalismo global ou surgiram sob a influência dos mesmos e, apesar de reivindicarem virem dar poder às classes capitalistas locais, a história já comprovou que essas elites estão intimamente ligadas aos capitalistas globais aos quais servem. É evidente que essa situação não só exacerba a desigualdade, como também funciona como um travão ao progresso verdadeiro e à autodeterminação econômica das nações africanas.

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Não há como negar a persistência do extrativismo como paradigma de desenvolvimento dominante no continental, um modelo que, controlado e supervisionado pelas transnacionais (TNC), consiste na exploração abusiva dos recursos minerais e, consequentemente, à acumulação de capital à custa das comunidades locais da periferia do mundo.

Na África Austral (e no Sul Global, mais genericamente), esse fenômeno manifesta-se na perpetuação de uma dependência na exportação de mercadorias, como culturas de rendimento e minerais, em detrimento de produção para responder às necessidades das populações e respeitar o ambiente. Normalmente, as empresas transnacionais beneficiam do apoio de acordos de comércio e energia que lhes facultam uma certa medida de impunidade e lhes permitem perpetrar os mais variados crimes económicos, incluindo fluxos financeiros ilícitos, evasão remuneratória e outras práticas danosas. Esses acordos proporcionam às transnacionais condições favoráveis que lhes permitem contornar as normas nacionais com o mínimo de penalizações. A anulação das condições conducentes ao exercício do poder e da impunidade das empresas transnacionais gera um meio favorável à instabilidade, ao conflito e, até, a conflagrações mais graves.

Os desenvolvimentos na África Ocidental no Sael

O declínio das aspirações democráticas no Sael está intimamente ligado à influência de longa data do sistema França Africa. Os interesses geopolíticos e as disputas entre o “Ocidente” e a Rússia que  complicam tudo, originando acontecimentos desestabilizadores como golpes de estado, por exemplo, o que ocorreu recentemente no Níger, cujo presidente, Mohamed Bazoum, foi deposto.

Embora os golpes militares contradigam claramente os princípios democráticos e não sejam recomendáveis, a situação do Níger, tem contornos muito específicos. Trata-se de uma ação militar aparentemente apoiada pela população em geral, desejosa por acabar com uma relação prejudicial entre o país e a França e, portanto, que parece ter motivações legítimas. Essa ligação entre o Níger e a França, sobretudo no que respeita à exploração dos recursos minerais e, mais especificamente, ao urânio, demonstra ser a principal preocupação.

O manifesto apoio de um grande segmento da população denuncia uma insatisfação generalizada com a presença da França, cuja presença se justifica apenas e só pela necessidade dos recursos naturais, em particular, o urânio, para garantir a sua própria estabilidade energética.

Há quem sugira que uma guerra é iminente na região, desencadeada pelos acontecimentos no Níger, com efeito a França e algumas nações da Comunidade Económica dos Estados da África  Ocidental, suas aliadas manifestaram interesse numa intervenção militar no país, sob o pretexto de restaurar a ordem democrática e reinstalar Mohamed Bazoum no poder.

Por outro lado, o atual governo marcial no Níger e outros governos de países que sofreram recentemente golpes militares idênticos contra líderes com simpatias pela França, como o Mali e o Burkina Faso, demonstraram-se dispostos, a não só a intervir, mas também a ajudar o Níger a defender a sua integridade territorial, opondo-se a qualquer tentativa de interferência armada por parte do estrangeiro.

Numa declaração emitida pelo seu Secretário-geral, o Partido dos Trabalhadores da Argélia condena as ameaças de intervenção militar estrangeira no Níger, “Conhecemos bem os interesses ao desejo do imperialismo dos EUA e da União Europeia de intervir militarmente no Níger. Utilizam a legitimidade constitucional, tal como utilizaram a democracia e os direitos humanos como justificação para as intervenções militares criminosas na Líbia, no Iraque, no Afeganistão, no Iémen e daí por diante. Para o imperialismo dos EUA e da UE, importa única e exclusivamente continuar a pilhar a riqueza do Níger, enquanto a população se vê desprovida das condições de vida mais básicas e mergulhada na mais absoluta pobreza. Importa igualmente impor a manutenção de uma presença militar multinacional no Níger”.

Não menos interessantes são as teses de uma possível intervenção do Grupo Wagner, uma empresa militar privada apoiada pelo Estado russo em defesa do regime golpista e contra a influência francesa, embora tais cenários sejam agora menos prováveis, dada a morte do respectivo líder, Yevgeny Prigozhin. A eventual deflagração do conflito na região com o envolvimento de mais de uma dúzia de países levanta sérias preocupações. A acontecer, esse desenvolvimento pode muito bem favorecer o imperialismo ocidental, dado a história nos mostrar claramente que exploração de recursos no continente africano tende a prosperar em tempos de guerra.

A insurreição da juventude na Africa

Aparentemente a apoiar os regimes pós-golpe, a insurreição da juventude nesta região reflete uma geração que já não se dispõe a aceitar o status quo, mas, pelo contrário, procura desafiar os regimes corruptos e exigir que os seus líderes assumam as responsabilidades. As redes sociais e as plataformas de comunicação digital foram preponderantes na mobilização e galvanização dos jovens ativistas dentro e fora das fronteiras, instilando neles o espírito de solidariedade e de ação coletiva.

Unindo-se para tornar a sua voz mais sonante, a juventude do Sael insta a uma governação inclusiva, a instituições transparentes e ao fim da corrupção, bem como a que se impeça a França de interferir nos assuntos internos e de saquear os recursos minerais do seu país. Os jovens organizaram mesmo ações de protesto prolongadas diante da embaixada francesa em Niamey, no Níger, que culminaram na “ocupação” e destruição das instalações.

A insurreição da juventude na África Ocidental e no Sael atesta bem o poder da ação coletiva e da crença de que o futuro da região está nas mãos da sua população juvenil. Apesar de estar a decorrer, a luta já marca um momento decisivo na história da região que traça o caminho para uma sociedade mais democrática, inclusiva e justa.

Mas subsiste a preocupação. Se não forem bem orientados do ponto de vista ideológico, estes jovens poderão muito bem ser terreno fértil para movimentos e grupos de extrema-direita ou, até, com tendências jihadistas. É urgente que os movimentos sociais e outros grupos progressistas ajam no sentido de cultivar a consciência política nestes jovens para, desse modo, os motivar a adoptar uma agenda progressista.

A insurgência e o fundamentalismo “Islâmicos”

A insurgência islâmica, cujo reduto original se encontrava na África Ocidental, expandiu a sua presença para a África Austral, deixando o norte de Moçambique a ferro e fogo desde 2017. As motivações variam, mas identificam-se dois fios condutores: conflitos de recursos e exclusão socioeconómica dos cidadãos de oportunidades política e económicas.

Em Moçambique, na raiz do problema parecem estar a frustração e a marginalização da juventude a quem é negado o acesso a uma participação política económica significativa. O desespero que daí resulta conduz os jovens a aderir a ideologias extremistas e a recorrer à violência para conseguir obter reconhecimento e mudança.

A resposta mais comum à exacerbação destes conflitos passou a ser a intervenção estrangeira, sobretudo, das forças ocidentais, nomeadamente, francesas. No caso de Moçambique, a presença de tropas russas da SADC (Comunidade de Desenvolvimento da África Austral) e do Ruanda só agudiza a complexidade da situação. As forças estrangeiras assumem geralmente a liderança em nome da luta contra os jihadistas e o terrorismo. Embora possa ajudar a resolver ameaças imediatas à segurança, a mobilização de tropas estrangeiras também suscita o receio de que traga com ela interesses estrangeiros para influenciar os assuntos locais. Substituir os exércitos locais por forças externas pode exacerbar inadvertidamente as tensões existentes e criar dependência na ajuda e no apoio militar do exterior.

Para percebermos o que está na base destas insurgências, temos de adoptar uma abordagem abrangente sobre o desenvolvimento socioeconómico, a capacitação da juventude e a integração política. Proporcionar oportunidades para a inclusão económica e a participação significativa na governação é uma forma de reduzir o apelo das ideologias extremistas e, assim, diminuir a margem para a violência e o conflito.

A urgência de construir uma agenda pan-africana popular

Entre estes desafios, o continente requer um projeto pan-africanista popular que uma os movimentos sociais e os intelectuais progressistas. Tal projeto almejaria a resistir a projetos imperialista e neoliberais e a contrapor governos antidemocráticos e desfavoráveis para os pobres.

Trabalhadores com diferentes interesses têm de colaborar e forjar alianças pelo desenvolvimento sustentável e a proteção da soberania. É preciso criar uma agenda pan-africanista popular e progressista que procure a união, a solidariedade e a autodeterminação económica para todos os africanos. Que aborde as injustiças históricas, as disparidades económicas e os desafios políticos, sempre com a visão de uma África unida e próspera. Para isso, é preciso erradicar a pobreza e a desigualdade, garantir uma distribuição justa dos recursos (especialmente, da terra e dos bens de produção), educação de qualidade, cuidados de saúde e habitação, entre outros elementos fundamentais.

Desafios Pan-Africanismo

Quanto à política, a agenda defende uma liderança responsável e a participação dos cidadãos para lá das urnas. Promove a integração regional e uma verdadeira liberdade de circulação. Relativamente ao ambiente, há que dar prioridade à agricultura sustentável, à industrialização amiga do ambiente e a meios de produção das próprias pessoas.

É fundamental capacitar os jovens através da educação e da geração de empregos. Resolver a dívida externa e promover a soberania económica são prioridades para conquistar o controlo sobre os recursos e as políticas. A solidariedade global para com os intelectuais e os movimentos progressistas destaca a interligação da libertação africana com as lutas pela justiça global.

Na sua essência, uma agenda pan-africanista de base tem de se enraizar inextricavelmente no anti-imperialismo e no anticolonialismo, tudo, sob uma robusta perspectiva feminista.

 

Fonte : Brasil de Fato

 Autor  :  Boaventura Monjane é jornalista e ativista moçambicano, com doutorado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal)

 



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